Site Alô Alô Bahia entrevista Malu Fontes

Em tempos nos quais o jornalismo e a liberdade de imprensa são assuntos que estão bastante em voga, a jornalista e professora de jornalismo da UFBA, Malu Fontes, conversou com o Alô Alô Bahia sobre os atuais acontecimentos que estão em destaque no Brasil, democracia e o papel das redes sociais na sua vida profissional. Confira:


Alô Alô Bahia: Com os acontecimentos atuais relacionados às mensagens que têm sido divulgadas pelo The Intercept Brasil, muito se tem discutido sobre liberdade de imprensa e democracia. As opiniões têm sido bastante divergentes nesse sentido. Em sua opinião, de que forma o jornalismo pode contribuir para a democracia?

Malu Fontes: O jornalismo só serve para uma coisa, e se não cumprir seu papel nisso, algo tá errado e as pessoas passarão muito bem sem ele: contar, mostrar às pessoas, como os poderes constituídos, a arte, a cultura e a sociedade ao redor, a local e a global, estão se comportando. Como estão agindo e funcionando e como essas engrenagens provocam impacto na vida de quem lê o jornalismo. Se você lê algo jornalístico que não lhe diz nada sobre essas questões, para que ler? Por que ler?

Associar o jornalismo à democracia parece frase feita, bordão, mas não é. A função social do jornalismo não é nos contar que Maísa Silva foi à praia de biquíni ou que Anitta fez um curso para massagear testículos. É nos contar como quem detém os meios de poder está agindo para que nós, sabendo disso, possamos nos manifestar politicamente, fazendo escolhas sociais, éticas, políticas e eleitorais, demonstrando com nossas reações se concordamos ou não com a forma como as coisas à nossa volta estão funcionando. Conceitualmente, o nome disso é deliberação.

O jornalismo, em condições ideais de funcionamento, nos informa sobre o funcionamento do mundo para que nós possamos deliberar na esfera pública, nos posicionarmos como cidadãos. Tomamos decisões com base nas informações que temos. Quando o jornalismo erra, fracassa nisso, silencia ou adultera os fatos, a opinião pública é estimulada a tomar decisões que estão ancoradas em equívocos, desinformação ou manipulações.

Por outro lado, hoje, com a polarização política, é cada vez maior a quantidade de gente no mundo que não está interessada na verdade sobre nada, contada por jornalistas ou por quem quer que seja. O que se vulgarizou sob o termo fake news é a falsificação de informações, a fraude dos fatos, a circulação de informações mentirosas, construídas estrategicamente por grupo políticos, religiosos, morais e consumidas por equívoco, mas também por muita gente que não tem o menor interesse na versão objetiva ou real dos fatos. As pessoas hoje tendem a estar interessadas em suas próprias verdades. Os fatos não agradam nossas expectativas, nossos pensamentos desejosos? Então a gente adapta os fatos e condena/ataca o jornalismo que está cumprindo o seu papel social, nos casos em que está.
 

Alô Alô Bahia: Qual é o papel das redes sociais para o seu trabalho como jornalista e professora e quais você acredita que sejam os cuidados que o público precisa tomar para consumir e compartilhar de maneira responsável essa grande quantidade de informações que circula todos os dias?

Malu Fontes: As redes, para mim, pois cada um customiza as suas e as utiliza para o que quiser, como quiser, são uma espécie de baciada do mundo que contém de tudo um pouco. Sigo pessoas e páginas que adoro, que detesto, institucionais, de humor, de ídolos. No meu caso, são uma amostragem do mundo público e da vida privada de pessoas públicas e comuns. Me informam? Em alguma medida, sim. Mas não são minhas fontes primárias de informação. Faço uma espécie de curadoria e sempre coloco as informações que vejo antes, ali, sob o filtro dos meios formais de informação.

Não é verdade que fontes não profissionais de informação e que não nos cobram nada por isso vão nos informar completamente. Informar-se é fazer uma curadoria minimamente criteriosa do que nos chega e custa tempo e dinheiro. Não respeito jornalistas que não gastam dinheiro com assinatura de produtos, que não leem. Mas eu não sou parâmetro. Faço isso por obrigação e por vício profissional. Não sou blogueira e não pago contas com likes ou compartilhamentos. Rede social é ponto de partida para refletir sobre as coisas, inclusive sobre o que postamos e sobre nossos próprios equívocos.

 
Alô Alô Bahia: Profissionais como o Paulo Henrique Amorim e Ricardo Boechat faleceram este ano, causando uma comoção muito grande nas pessoas que acompanhavam o trabalho de ambos. Quais você acredita que foram as principais contribuições deles para o jornalismo brasileiro?

Malu Fontes: Nas bolhas em que vivemos, envoltos em super camadas de informação, a maioria inútil, rasa e mal construída, há um contingente de pessoas, da audiência do jornalismo, em busca de bússolas informativas. E, paradoxalmente, o que temos em excesso são manadas, hienas anódinas nos berrando coisas que não despertam atenção, tesão, interesse em que, de fato, quer se informar. E o jornalismo está cheio de discursos beges, bonitinhos ou engraçadinhos. Pessoas poderiam amar ou odiar Boechat e Paulo Henrique, já que estamos falando dos dois. Ambos eram controversos, polêmicos, e agora estão mortos. O que eles tinham em comum e por que provocaram comoção para além das 24 horas de duração de uma stories? Porque não eram beges, davam a cara a tapa, pagavam a fatura de dizer coisas, inclusive acumulando processos judiciais. E não eram processados por pregarem achismos. Todo idiota acha tudo sobre tudo. Estamos falando de contexto, de informação, de repertório, de crítica contundente, de personalidade impressa no que se diz, de profissionais que apertam o botão da zona de conforto, se inscrevem todo dia na história do país, colocam dedos nas tomadas dos mais poderosos. E, obviamente, embora pareça clichê, estamos falando também de humor, sarcasmo, picardia, carisma. Esses são elementos da epiderme do jornalismo, que fazem toda a diferença, mas parecem estar em extinção. É saudável e revolvedor ler, ver e ouvir quem nos instiga, quem nos belisca e morde com palavras, mesmo que a gente discorde do que é dito. Não à toa, Reinaldo Azevedo vem hoje ocupando o lugar que ocupa. As pessoas podem discordar dele, mas ele está sentado sobre a segurança de saber do que fala. Alguém estremece um neurônio ouvindo a burocracia embolorada de um Alexandre Garcia, sobre o que quer que seja? É um agradador dos semelhantes, só isso. Uma voz que se deixou fixar voluntariamente numa estação tediosa da história. Seu público embolorou junto e não tem expectativas quanto a nada solar vindo dele. Sua audiência é a de quem teme o desconforto do contraditório.
 

Alô Alô Bahia: Você tem algum desejo profissional que ainda não realizou?
  
Malu Fontes: Quem não deseja, já morreu. Sou zero sonhadora, mas desejos são diferentes, de outra ordem dos sonhos. Sou bem obediente a desejos. Faço o que faço hoje por escolhas. Fiz trocas nem um pouco pragmáticas por absoluto desejo. Acho um privilégio luxuoso ter um trabalho que me obriga a ler de tudo, a folhear o mundo todos os dias, mesmo agora, quando as coisas andam meio eclipsadas no jornalismo, na universidade... Talvez meu desejo mais claro seja escrever com regularidade e escrever melhor. Mas sofro de deformações que emperram esse desejo: indisciplina, overdose de interesses e auto-boicote.
 

Alô Alô Bahia: Uma recomendação de filmes, música e livros para o público do Alô Alô Bahia.

Malu Fontes: Pode ser mais de uns, e só para hoje? Nunca iria para uma ilha deserta com uma escolha só...
 
Filmes:

Dor e Glória
Pedro Almodóvar/2019
 
Chame-me pelo seu nome
Luca Guadagnino/2017
 
Incêndios
Denis Villeneuve/2011
 
Livros:

Para agora, três livros óculos para compreender como estamos vivendo, no mundo, nas cidades, nas redes, dentro de casa:
 
Dentro do nevoeiro - Guilherme Wisnik
A casa no Brasil - Antônio Risério
Lugares distantes - Andrew Solomon
 
Canção:

Descomunal - Rael

 

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